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12 de jan. de 2015

DIAS IGUAIS


            Conto de Fernando Canto
1.
Caía uma chuva fina e chata. Era a véspera do dia primeiro de janeiro de 2015.
Perto da meia-noite eu e meus elegantes parentes fizemos a ceia e desejamos um ano próspero e saudável recíproco, nos cumprimentando e nos abraçando uns aos outros, registrando nossa felicidade em fotos e filmes, mostrando sorrisos lindos em selfies maravilhosos nas redes sociais, até que minha irmã não se conteve e falou sobre a ausência de nossa mãe que havia morrido entalada na ceia de natal com um naco de peru assado. Foi uma choradeira geral que acabou com a festa. Eles se despediram e eu fiquei em casa com a mulher a olhar pela janela de vidro os carros se afastando na chuva.  Ninguém quis esperar as doze badaladas do velho relógio de parede que antigamente encantava os olhos dos meus sobrinhos. Abri o Chandon sem escutar o barulho da rolha estourando, pois lá longe, na frente da cidade, belíssimos fogos de artifício explodiam em cores, desenhando novas estrelas sob um céu escuro e chuvoso. Eu nem reparei no tempo passando. A chuva aumentava de intensidade jogando grossos pingos na vidraça. Bebi a última taça do champanhe e fui dormir.

2.
            Ao acordar, ainda cedo, chamei Norya para caminharmos como fazíamos todos os dias. O dia amanhecera calorento, mas com indícios que não choveria mais. De fato, o sol surgiu nos dando a luz que a esperança traz nesses momentos ritualísticos de transição para um tempo bom que todos querem. No percurso as pessoas se cumprimentavam desejando sorte, saúde e prosperidade, o que, aliás, é uma coisa que gosto nesse período porque elas mal falam com a gente e nem sequer nos dão um bom dia no resto do ano, mas agora são educadas e comunicativas. Agem com cortesia e educação como se fossem sempre assim. Nessa época muitas delas parecem mesmo felizes, e eu reitero que acho bacana. Estou convicto de que não faço parte da plateia que as aplaudem em suas atuações anuais. E ademais todos vestem suas máscaras para se dar bem. Inclusive eu no meu trabalho, onde tenho que lidar com hipócritas todos os dias.
3.
            Caminhamos cerca de sete quilômetros em uma hora, como sempre. Falamos do cotidiano, dos filhos que mandamos estudar nos Estados Unidos e que por lá ficaram pelas oportunidades de emprego e segurança; da nossa saudade deles e dos netos; dos nossos trabalhos e da nossa solidão. Às vezes falávamos em viajar, mas sempre aparecia algo que nos fazia adiar o projeto. Era bom falar sobre isso porque já sentíamos o peso da idade e tínhamos que ser sempre companheiros para o que viesse. Eu já tinha uma doença crônica que controlava com remédios, e em Norya foi detectado, mas felizmente depois extirpado um câncer no cérebro, após uma delicada e bem sucedida cirurgia. Mesmo assim ela se submeteu a um doloroso processo terapêutico que a deixou quase irreconhecível por muito tempo.

1.
            À noite Norya e eu nos vestimos a caráter como no dia anterior e arrumamos a mesa nos preparando para a ceia familiar. Lá fora caía uma chuva fina que parecia não querer parar mais. Antes da meia-noite fizemos a ceia familiar, nos cumprimentamos e registramos nossos momentos particulares. De repente, minha irmã, tão sensível que era, começou a chorar falando o nome de mamãe que há poucos dias havia se engasgado com um pedaço de peru assado em plena ceia de natal. Consternados pela lembrança da matriarca em sua tragédia, meus parentes foram embora nos deixando tristes. Choravam muito sob a chuva que caía até entrarem em seus carros e tomarem o caminho de suas casas. Eu abri uma garrafa de champanhe e fiquei olhando o céu estrelado das cores dos foguetes que explodiam no céu escuro para as bandas da Beira-Rio. A chuva engrossara e batia com força nos vidros da janela. Tomei a última taça e fui dormir.
2.
            De manhã bem cedo acordei Norya e fomos caminhar como sempre o fazíamos. E o sol surgiu trazendo novas esperanças. Os passantes nos cumprimentavam felizes porque era o início de um ano que prometia ser melhor que o anterior. Eu comentava com minha esposa sobre como nossos colegas de caminhada eram corteses neste dia, já que eles nunca nos cumprimentavam, o que me fazia sorrir de contente e dizer a ela que gostava daquilo porque cada um põe a sua máscara no seu dia-a-dia para sobreviver, igualzinho a mim no meu trabalho.
3.
            Caminhamos como de costume aproximadamente sete quilômetros em uma hora. Falamos de tudo: dos filhos e netos no estrangeiro, da imensa saudade deles, das nossas ocupações profissionais e da nossa força para continuar vivendo sós, sempre colados, afinal estávamos ficando velhos e já havíamos passado por momentos terríveis de doenças graves. E Norya passou por momentos críticos durante o processo de cura de um câncer no cérebro.


            Certa noite, quando preparava a ceia de ano novo para a família em casa, me dei conta que aquilo vinha se repetindo como uma liturgia todos os dias do ano. E fiz um esforço supremo para lembrar algo que não fosse a nossa vivência dentro dos acontecimentos dessa noite e os do dia seguinte. Não consegui.
            Antes dos parentes elegantes chegarem reparei no relógio que antigamente encantava as crianças da família: batia nove horas. E seus ponteiros continuavam girando em sentido horário. Olhei-me no espelho da antiga cristaleira da sala e enxerguei minhas barbas tão brancas quanto a de Papai Noel. Também constatei uma espécie de vulto de Norya e a ausência de alguns dos meus parentes. Era uma constatação angustiante e sofrida como um paradoxo de tempo em minha memória, assim como se fosse um ferro em brasa penetrando na cabeça sem queimar, algo que quer fazer a lembrança fluir, mas encontra um paredão inacessível. Pessoas e carros viravam sombras embaixo da minha janela sob a chuva contumaz e os brilhos dos fogos de artifício coloridos caíam lentos no espaço escuro da noite. Eu começava a me embriagar com a última taça de champanhe e já não conseguia dormir.
            De manhã bem cedo em um desses dias de chuva fina quando as notícias dos jornais se repetiam, acordei a sombra de Norya para a caminhada matinal. O sol já se abria e as pessoas se cumprimentavam e nos desejavam saúde e prosperidade, embora não tivessem mais o entusiasmo e os mesmos sorrisos de antes. Ao chegar em casa encontrei o celular da minha mulher em cima do sofá, e ao manuseá-lo vi um calendário do ano de 2015. Certamente ela havia tentado sair desse ritual que nos prendia a um tempo pesado e mórbido que se derramara sobre a vida de todas as pessoas da cidade. Comecei a lembrar dos acontecimentos repetidos e num esforço sem precedentes não bebi mais champanhe e abri a janela de vidro para a chuva entrar em casa até amanhecer o dia.
            Foi Norya que me acordou desta vez, não a sua sombra. Caminhamos entre carrancudos passantes e uma chuva torrencial lavou a calçada enquanto o rio Amazonas dançava espocando suas águas no muro de contenção. Norya me olhava assustada e cúmplice, porque sabia que o ritual que participamos tantas vezes era imprescindível para vivermos. Imperioso era não morrer com nossos históricos apagados pelos cumprimentos, desejos e lembranças num mundo moderno que comprimia uma soturna solidão estampada no rosto dos caminhantes, os mesmos que punham suas máscaras demoníacas nas festas de fim de ano.
            À noite vesti meu velho terno branco e Norya o seu melhor vestido. Ninguém veio nos visitar. Jantamos à luz de velas e adormecemos felizes ouvindo o barulho da chuva na vidraça.
*******

            De manhã cedo foi Norya que me acordou e não a sua sombra. Então caminhamos sorrindo entre o vai-e-vem dos passantes, embaixo de um novo temporal que nos lavou a alma. O ano novo se aproximava novamente, pois o grande relógio digital da Beira-Rio o saudava em seu letreiro. Era a véspera do dia primeiro de janeiro de 2035.



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Fernando Pimentel Canto, paraense de Óbidos, radicado em Macapá, nasceu  no dia 29/05/1954. É sociólogo, poeta, escritor e compositor (atuando no Grupo Pilão), servidor da Universidade Federal do Amapá - Unifap, onde implantou a Editora e Rádio Universitária e já publicou, dentre outros, os seguintes livros: Os Periquitos Comem Manga na Avenida (poemas, 1984); São José de Macapá - Roteiro Poético (1985); Telas & Quintais (artigos e crônicas, 1987); Fedeu, morreu! (poemas, 1992); O Bálsamo e outros Contos Insanos (Editora da UFPA,1995); A  Água Benta e o Diabo (ensaio sociológico, 1998); Equino Cio – Textuário do Meio do Mundo (poemas, 2004); Adoradores do Sol (crônicas e artigos, Scortecci, 2010). Em 2002, lançou o CD A Música em Fernando Canto – 30 anos, onde reúne composições tendo como parceiros Osmar Júnior, Zé Miguel e Naldo Maranhão.

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